plural

PLURAL: os textos de Juliana Petermann e Eni Celidonio

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Um novo normal
Juliana Petermann 
Professora universitária

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O conceito de novo normal surge da dificuldade em lidar com a instabilidade. É difícil admitir que vivemos um período caótico. É difícil a relação com um futuro imprevisível e com a impossibilidade de fazer planos. É difícil, também, admitir que velhos hábitos, como cumprimentar alguém com um aperto de mão ou ir ao supermercado, precisaram ser reformulados. É difícil pois nos exige muito: os hábitos são criados para que possamos consumir menos energia no cotidiano. Se não fossem os hábitos, teríamos que reinventar a roda todos os dias. Berger e Luckmann explicam que os hábitos nos libertam das tomadas de decisões, pois reproduzimos ações na busca de eficiência e alívio psicológico.

UMA BUSCA DESESPERADA

A reinvenção de ações cotidianas, a tragédia de mais de 100 mil vidas perdidas e o medo de perder alguém querido - ou ainda, temer por nossa própria saúde - fazem com que viver o contexto anormal de uma pandemia gere um enorme dispêndio de energia. Por isso, saímos em uma busca desesperada por um novo normal, já que o antigo tornou-se arriscado demais. Mas o "novo normal" carrega em si uma enorme contradição. Pois ou é novo, diferente e inusitado, ou é normal, igual, cotidiano.

I Um novo anormal

No dito novo normal, instituímos hábitos um tanto controversos, que compreendem, por exemplo, passar álcool gel sobre álcool gel até criar uma crostinha nas mãos. Ou lavar tanto, a ponto de desidratar a pele. Ficar com preguiça de ir ao mercado, por ter que higienizar todos os produtos, e esgotar todo o estoque da casa. Ou esperar a hora de ir com ansiedade, pois é o passeio do mês. Ter em casa o cantinho dos objetos "infectados" e ficar colocando esses objetos no sol até "desinfectar". Ou estragá-los com banhos de álcool. Colocar a melhor roupa para ir ao médico, como se fosse passear. Ou colocar a pior, já que terá que lavar tudo na volta para casa. Ter medo de colocar a máscara do lado avesso. Ou comprar muitas e sempre achar outra mais segura que a sua. Ver filmes e novelas, reparar nas cenas de aglomeração e pensar: como podia isso? Mas também sentir saudades dessas junções. Agendar 15 lives e não ver nenhuma. Ficar de fazer mil vídeo-chamadas e não ligar para ninguém. Ver TV e achar que a escolha da novela a ser reprisada não foi a mais acertada. Ou ficar sonhando em ver a programação interrompida pela musiquinha do plantão, com a manchete sobre a descoberta da vacina. Essas contradições convertem o novo normal em novo anormal.

Mais um Dia dos Pais sem o meu morubixab
Eni Celidonio 
Professora universitária

style="width: 25%; float: right;" data-filename="retriever">Ele resolveu ir embora quando eu tinha 22 anos. Taí uma coisa que me causa inveja eterna: quem ainda tem pai, quem ainda pode abraçar, beijar, pedir conselho e ter e receber carinho. Gente, como pai faz falta!

Não tem um dia que eu não me lembre dele, ainda mais agora, quando as pessoas resolveram se achar melhores que as outras, seja dando carteiraços, seja humilhando tipo "eu sou melhor que você, você nunca vai ter o que tenho" e blábláblá. Ah meu pai ouvindo isso! Papai era um contador de histórias juramentado, principalmente histórias de caboclos do interior do Amazonas. Nascido em Itacoatiara, sempre tinha na manga um caso que se aplicava ao que estava acontecendo com a gente. Agora, por exemplo, ele assistiria a essas notícias na televisão e diria: "mas isso me faz lembrar de um caso em Itacoatiara que...", e lá vinha uma história. Por exemplo, eu me lembro de uma vez ter arrebentado um cano na nossa casa e ele precisar de um encanador. Comentando com um vizinho, daqueles que comem batata e arrotam bacalhau, perguntou se conhecia alguém e ouviu como resposta: "Ter tem, mas são todos analfabetos, mal sabem escrever o próprio nome." Pronto! O sujeito deixou a bola quicando na área e ele pegou de sem pulo:

O CABOCLO E O DOTÔ

"Sabe que, uma certa feita, apareceu lá em Itacoatiara um cientista bem vestido, cheio de livros na mão. Ele tinha ido lá estudar umas plantas medicinais e, chegando na beira do Rio Amazonas, perguntou a um caboclo, que amarrava a sua canoa, quanto ele cobrava para levá-lo à outra margem. Combinaram o preço e o sujeito se sentou, suando com aquele calor e com aquela montanha de livros no colo.

O caboclo remava, remava, e lá pras tantas o doutor puxou conversa:

- Caboclo, tu conheces Botânica?

- Não, seu dotô.

- Lamentável! Perdeste dez por cento da sua vida.

O caboclo remava...

- Caboclo, já estudaste Zoologia?

- Estudei não, seu dotô...

- Que tristeza! Perdeste vinte por cento da sua vida.

O caboclo continuava remando...

- Caboclo, por acaso não sabes nada de Biologia? ?

- Nem sei o que é, seu dotô.

- Pois, saiba que perdeste 30 por cento de sua vida.

O caboclo, remando, começa então a ficar aflito e pergunta ao botânico:

- Dotô, o sinhô sabe nadá?

- Não... Por quê?

- Sá Sinhora! Então, o sinhô perdeu a vida toda, porque o barco tá afundando e aqui é cheio de jacaré..."

Conclusão: não existe conhecimento melhor ou pior, existem conhecimentos diferentes. Em outras palavras, naquele momento meu pai precisava de alguém que soubesse mexer em encanamentos, não de um intelectual.

Que saudade do meu pai!

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